Este é um espaço que se pretende aberto a quem goste de contar histórias e de andar nos turbilhões labirínticos das palavras e das cores como bouquês feitos de lâminas.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

FAZER DE UM SEM ABRIGO UM AMIGO

Pela primeira vez vou contar uma história real na primeira pessoa. Faço recorrendo ao estilo que pretendo seja o mais objectivo possível. Por envolver outras pessoas apenas as mencionarei pela inicial do nome. O que vou relatar é real e aconteceu durante o mês de Maio comigo e com a minha família.



Acredito como sempre acreditei que ajudar uma pessoa é salvar o mundo. É isso que me move, hoje e sempre. Só me posso sentir priveligiada por ter tido a oportunidade de a poder viver, eu e as minhas pessoas de casa.


Pertenço à Associação Conversa Amiga que tem como objectivo, num dos seus projectos, estabelecer laços de amizade com os sem abrigos. Como voluntária estou incluída em saídas de rua que aos sábados à noite se dirigem a vários locais da cidade de Lisboa com uns carrinhos com chá e produtos de higiéne, mas sobretudo com muita disponibilidade e afectividade para ouvir e conversar.


O voluntariado como se sabe promove a nossa auto estima e sentimos que ali somos importantes, seja na oferta de um chá, num abraço que se dá, numa festa de anos que se faz ou num curativo que se aprende a fazer. Dias bons e dias difíceis. Como a vida. Só que lá somos precisos, essenciais e isso nem sempre acontece com o resto das coisas que fazemos no nosso dia a dia.


Foi numa destas saídas que conheci o D, o Romeno, que na Praça do Comércio aguardava a carrinha da distribuição de comida. Chamou-me a atenção o seu jeito mudo e interrogativo. Era como se estivesse a observar e não a pedir. Cheguei-me a ele e começámos a conversar. Contou-me que nas férias da Páscoa ia à Roménia e que tinha sido roubado em Santa Apolónia não tendo tido ajudas da embaixada, pelo que sem dinheiro e sem trabalho, dormia debaixo do aqueduto das águas livres e que ia às arcadas da Praça do Comércio todos os dias buscar a comida. Só duas semanas depois e já em minha casa, soube que durante o dia, o D, ficava na FNAC para poder ler de graça e visitar os museus onde não se pagava entrada.


Naquela noite, perguntei-lhe se ele precisava de alguma coisa, roupas, ou outros artigos. Disse-me que não. Ainda hoje me interrogo porque lhe fiz a pergunta: e livros? os olhos do D até aí inexpressivos, brilharam de emoção e descobri que a leitura é uma linguagem universal para quem adora ler.


No dia 23 de Maio, data da saída posterior viajavam comigo : o Zé, o meu marido, um grupo de uma universidade e dois livros para o D. Assim que chegámos às arcadas lá estava ele e quando nos abraçamos era como se de dois amigos se tratasse. Os livros foram trocados por nomes de instituições que ajudam emigrantes de leste e que talvez pudessem resolver o seu caso. No meio soube que ele era jornalista na Roménia e que só tinha vindo para Portugal porque a diferença de ordenados era imensa : como jornalista na Roménia ganhava 200,00 Euros e em Portugal a trabalhar como empregado numa fábrica de cortiça ganhava 75,00 Euros por dia. Falámos de muitas coisas numa noite de chuva que parecia não ter fim.


De repente alguém me toca no braço e pede para falar comigo. Era o F, aluno da Universidade e um dos membros do grupo da visita. Perguntou-me se a história do D me parecia verdadeira ao que eu lhe respondi que sim. Olhou para mim, tocou-me no braço e disse para não me preocupar mais que ele punha o D na Roménia. Confesso que ao principio não entendi. O F teve de explicar : ele pagava o bilhete de avião para o D poder voltar para casa.


Das emoções seguidas entre nós os três, abraços e choros debaixo de uma paragem de autocarro, não vou falar. Não consigo transmitir por palavras o meu " NATAL EM MAIO" : a dádiva genuína , o agradecimento e o turbilhão de sentimentos de quem volta a acreditar que todos somos bons e próximos, apenas cabem numa única palavra : PARTILHA.


Temo que me esteja a alongar.

Resumindo, o F pagaria a viagem, a Conversa Amiga através do seu director, acompanharia o processo e o D foi para minha casa na 4ª feira à noite tendo embarcado para a Roménia na 6ª feira ao meio dia.


Dos dois dias de convivio familiar, comigo com o Zé e os meus dois filhos, o Simão e o Tomás de 20 e 15 anos apenas vou dar conta do primeiro jantar que ficará para sempre guardado na lembrança e na memória dos cinco felizardos que o viveram.


Uma mesa de jantar. Bacalhau e salada. Na televisão uma final da taça. Os homens da casa, incluindo o D, adoravam footeball e sabiam os nomes dos jogadores e equipas. Trocaram-se depois receitas culinárias. Falou-se de jornalismo já que o Simão está a terminar o curso de Comunicação Social. Musica, muita musica. Pink Floyd, a banda predilecta do D, Clash os ídolos do Zé. SoapBox a banda do Simão que vai tocar ao SuperBock no próximo dia 11 de Julho no Porto mas que já passa na rádio Transilvânia da Roménia. Jogos de computador, evidente. O D jogava on line o mesmo jogo que o Tomás joga. E livros, muitos livros. Miguel Esteves Cardoso. o MEC, já com os fans caseiros e agora mais um, o D Romeno. Pintura, claro, a dona da casa pinta, as paredes estavam repletas de telas. O génio do meu Picasso foi discutido com o exuberante Dali do D.

Um café, bolachas de canela e um cigarro para os mais velhos. E Filmes ? os mesmos, Clint, o grande mestre, Million Dollar Baby, um filme aplaudido por todos.


A sexta feira da partida. Passsaram tão depressa os dias. Como explicar, que fazer de um sem abrigo um amigo é verdadeiro, que pode ser possível, que acontece mesmo. Não sei. Apenas digo que foi difícil dizer adeus a um amigo que provavelmente não se tornará a ver.


Os mails resolvem em parte a ausência e as saudades. Desde aí têm sido muitos. O D já é de novo jornalista na Roménia e esteve esta semana a fazer a cobertura de um festival de cinema. Notícias felizes e outras menos boas. Hoje soubemos que a tia do D tinha falecido e foi com um sentimento de amizade profunda que lhe mandámos um abraço dos amigos de Portugal.


Afinal, para nos conhecermos e gostarmos uns dos outros não precisamos de quase nada :

Apenas de sermos quem somos e como somos.

1 comentário:

  1. Xana, devias ser proibida de ficar sem escrever mais que 24 horas.
    Não sei se reparaste que publicaste a história a 10 de Junho.
    E não sei se leste o brilhante discurso do António Barreto. Ele falava ontem do poder insuperável do exemplo, vindo dos que têm poder. Ora todos temos poder. Lê-o, sff, aqui: http://static.publico.clix.pt/docs/politica/antonio_barreto_10062009.pdf

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