Este é um espaço que se pretende aberto a quem goste de contar histórias e de andar nos turbilhões labirínticos das palavras e das cores como bouquês feitos de lâminas.

domingo, 29 de março de 2009

CARRINHOS DE RODINHAS COMO NÓS




Num sábado igual a tantos outros encontrei a família distraída e saí da dispensa. Já há muito tempo que tinha planeado esta viagem que feita desta forma mais parecia uma fuga de casa. Ainda bem que há dois anos os meus donos decidiram comprar esta casa com elevador, senão as antigas escadas iam ser complicadas de descer.

Já na rua o grande problema foi descer passeios e subir lombas, para já não falar das escadas do metro. Eu, e as pessoas que as outras chamam deficientes andamos à "nora" para andar nesta terra. Parece que só pensam neles com pés certinhos e pernas direitas. Nada para quem tem rodinhas.

De repente os obstáculos deram lugar ao verdadeiro grito do ipiranga :

O meu primeiro bilhete de metro tirado sozinho e por mim próprio e ainda por cima para não ir às compras. Mesmo carregado como ia, só me apetecia cantar e pular. Nunca me senti tão feliz : viva a liberdade, abaixo a opressão , contra os tiranos donos das dispensas e o que dizer dos horríveis, barulhentos e mal cheirosos sacos de plástico que não paravam de me enfiar como se eu fosse um caixote do lixo.

Desci as escadas rolantes, uau ... e entrei na carruagem. Ao fundo já lá estavam todos. Está tanto frio, disse eu. Mesmo no mundo dos carrinhos das compras não há nada como o tempo para meter conversa. Depois foi o habitual, nada de dispensas, nem dos afazeres próprios de um carrinho de compras . O que importava nessa noite era o que íamos fazer.

O comboio parou. Todos em fila: 1, 2 e 3. up up, up já está... conseguimos. Estão todos, verificou o mais velho e que parecia ser o chefe. No mundo dos carrinhos das compras também há chefes. Não há hipótese. Até o meu espírito anarquista já se adaptou e em vez disso chamo-lhe organizador, coordenador, gestor, sei lá tudo o que não se pareça com chefe, mesmo.

Na rua fria, todos juntinhos íamos calados. Estávamos próximos e cada um ia com os seus pensamentos. Mais uma vez olhámos para dentro de cada um e verificámos que estava tudo completo e pronto. Nessa noite houve muito trabalho : havia poucas coisas para muitas pessoas. Cada vez são mais, temos de arranjar mais carrinhos, pensei.

Após estarmos vazios decidimos não ir embora. Assim como assim, só iam dar por nós no domingo de manhã quando quisessem ir às compras e se calhar nem isso.

Fomos buscar uns caixotes para descansar as rodinhas e nós e os outros, os amigos, as pessoas que lá estavam à nossa espera ,conversámos, contámos histórias, rimos, dançámos pela noite dentro e fomos talvez felizes.

Felizes, assim assim, só um bocadinho, que é difícil ser feliz, quando mesmo carrinhos revolucionários como eu não conseguem, não podem ser mais que simples carrinhos de rodinhas.

Na minha dispensa é que eu já não fico mais, pensei eu. Sempre fui um destemido, partidário de causas e decisões repentistas.

Baixei-me e ajustei a minha rodinha cansada e pesada. Curioso, agora que estava vazia é que estava tão pesada que eu quase não podia com ela. Milagre das rodinhas, pensei . Eu que até nem sou religioso; mas que pesava como chumbo, pesava.

Depois, pela manhã, nós os carrinhos das rodinhas , os outros, os nossos amigos , os que lá estão agora , dissemos todos adeus e até para a semana.

Adeus, e até para a semana ...

quinta-feira, 26 de março de 2009

MIMAR SEM PRECONCEITOS


Como é costume todas as semanas passo um dia inteiro no hospital. O meu médico fica junto ás consultas de pediatria e gosto de observar os pais e as crianças. Têm todos um ar tão feliz. Nenhuma criança chega ao colo da mãe, do pai, ou da avó. As crianças mais pequenas vêm sempre encafuadas naquelas cadeiras que vemos nos carros. Depois põem as fraldas a tapar que nem podemos ver os pequeninos. Já vi mesmo mudarem as fraldas e darem o comer sempre na cadeira.

Que me perdoem os pais, mas há muito que tais caixotes (é isso que me parecem) com ou sem rodas me irritam. Excepto para andar de carro, que eu aí entendo, que é pela segurança.

O que eu penso é que devem ser muito pesadas e devem dar cabo das costas aos pais e ás mães. Acho não,tenho a certeza. Se trouxessem os bebés ao colo como no meu tempo assim só tinham de pegar nos meninos. Não percebo como não pensam nisso, agora que são todos estudantes, todos têm cursos e tudo.

Será que é por dizermos para não pegarem nos bebés que eles depois ficam com manhas e já não querem dormir? se calhar ainda acreditam nisso. Outro dia na televisão falava um médico a dizer
que se os bebés estão 9 meses dentro da nossa barriga é natural que eles queiram o nosso colo e que isso só lhes faz bem. Diz ele que é tão importante, como lhes dar comida e mantê-los limpinhos e dar-lhes de comida. E mais, que as pessoas mudavam de casas, compravam carrinhas, roupas e brinquedos caros e depois esqueciam-se do mais simples.
Dar muito colo aos filhos pequeninos.

Eu já sou muito velha. Sou a vizinha da Luiza, lembram-se aquela de quem o meu gato gostava. Nunca tive colo, a minha mãe não ligava a essas coisas. Pior, também não o dei quando o meu filho era pequeno, como morava em África e tinha-mos criadas entreguei-o a uma ama preta que tratou dele.

Mais tarde, já tinha passado o tempo. Ele já não cabia lá.

A olhar para aquela mãe nova, tive vontade de me aproximar da cadeira do bebé e pegar-lhe ao colo e sentir o bater do seu coração junto ao meu. Sei que não estava certo mas era a minha vontade e se calhar o menino deixava de chorar tanto.

Quem é que não gosta de estar ao colo ?

segunda-feira, 23 de março de 2009

CONTRA O ARMÁRIO, PERANTE A PREPOSIÇÃO


Gosto naturalmente de preposições. habituei-me desde pequena a ouvir a minha mãe debitá-las de cor e eu gostava não só do conteúdo mas da sua musicalidade que o ensino primário do estado novo ensinava aos seus instruendos mais novos. Tenho pena de não saber escrever musica para poder devidamente traduzir a " cantilena" , mais parecida com uma lengalenga, para poder transmitir os ensinamentos de então :

Só para relembrar os menos atentos as preposições são as palavras invariáveis que relacionam dois termos de uma oração, de tal modo que o sentido do primeiro (antecedente) é explicado ou completado pelo segundo (consequente).
Juro que esta definição teve de ser extraída directamente da óptima gramática existente na biblioteca caseira.

Então vamos às palavras (que a dita chama de preposições simples) e que são dessas que eu me lembro :

A,COM, EM, POR, (PER),
ANTE, CONTRA, ENTRE, SEM,
APÓS, DE, PARA, SOB,
ATÉ, DESDE, PERANTE, SOBRE, TRÁS

A Maria nunca foi com a cara do Miguel. Não sabia bem em quê que ele a irritava mais: se na sua cara bolachuda ou se no seu sorriso eternamente falso. Via-se pelos olhos. Não, tinha a certeza que era por aparecer sempre sem que se desse por ele. Ante semelhante criatura, só podia haver uma táctica contra a espécie em si. Sim porque o problema era mais grave, visto entre os seus colegas serem vários os rapazinhos sem graça, que após uma primeira subida de elevador juntos, já se sentiam com direitos de se encostarem sorrateiramente nos seus cabelos e nos seus braços para lhe entregar um relatório. Sob desculpa de serem bons colegas e divertidos era fácil a insinuação machista. Já quase valia tudo; até mesmo os convites consecutivos para os cafés da manhã e da tarde. A pressão era grande mas tudo continuava igual.

Trabalho na secretária por trás da Maria e da Teresa e sei desde sempre que elas vivem juntas. Perante as manobras sexistas a vida das duas mulheres continua igual no seu esconderijo secreto.

O grande problema de não saírem do armário leva a que o Miguel e os outros continuem de novo a entregar os relatórios à Maria e a ignorar a Teresa. No escritório todos dizem que ela gosta de mulheres ...

Sobre as preposições não está tudo dito. Um dia havemos de voltar de novo.

quarta-feira, 18 de março de 2009

A LIRA


Van Gogh

Esta é uma história que já aconteceu há tantos anos que podemos chamar-lhe lenda. Até eu própria já não me lembro onde a li. São assim as histórias que começam com ...

Era uma vez, num pais muito distante, um pai já muito velho que vivia apenas com o seu filho mais novo. Todos os outros já tinham partido ou morrido. Na casa velha restavam os dois, pai e filho que de tanto se adorarem, quando um dizia alguma coisa era como se falassem os dois.

Nessas terras antigas havia muitas batalhas e o jovem foi chamado a combater. O velho pai apesar do receio que tal jornada implicava não falou nada. Guardou todos os medos para si e ajudou o filho nos preparativos da partida .
Quando em cima do cavalo, o rapaz se voltou para trás para acenar um ultimo adeus, o pai quis sorrir mas não conseguiu. Levantou apenas a mão direita e acenou como deviam ser as despedidas entre pai e filho.

Duravam muito as batalhas naquele tempo e as noticias eram poucas ou nenhumas. A vida corria com a calma desses tempos e o velho sentava-se todas as manhas debaixo do castanheiro mais alto da quinta e sentava-se num banco e aguardava numa espera com esperança.

Num dia soalheiro de verão, pela manhã, ouviram-se vários cascos de cavalo. O velho não se chegou à janela. A sua mão tremia quando abriu a porta da casa. Eram três os cavalos e dois os cavaleiros. Dirigiu-se ao que vinha amortalhado e com ou sem as suas forças pegou no filho. Os outros dois homens , jovens ainda, tentaram ajudar mas o velho afastou-os com a mão direita e passou por eles como se nem os visse.

Dirigiu-se ao castanheiro e ai ficou dois dias e duas noites ao pé do corpo do filho. Quem passasse havia de dizer que estavam a conversar, os dois. Uma conversa decorria calma e tranquila entre pai e filho, como se estivessem a planear uma viagem ou apenas a contarem histórias um ao outro.

Na manhã do terceiro dia o velho foi buscar umas madeiras e fez um caixote do tamanho do filho. Com as madeiras trazia uma corda e outras ferramentas. Debaixo do castanheiro apenas ficou o banco, uma manta que servia de enxerga às noites mais frias e a caixa pendurada por uma corda no velho castanheiro.

Passaram-se anos e o velho como que por milagre continuava vivo, como à espera, a aguardar alguma coisa. Tinha chegado a hora : vestiu a sua melhor roupa, fez a barba, deu um beijo no retrato da mulher e fechou a porta, dirigindo-se ao castanheiro.Tirou parte da tampa e dos restos do corpo do filho extraiu os ossos mais compridos que encontrou.
Depois com cordas finas construiu uma lira.
Conta quem viu e ouviu, que era a lira mais linda e tinha o som mais doce do mundo.

Apenas tinha uma particularidade : as musicas que tocava eram as mais tristes do mundo, tão tristes, tão tristes que a gente daquele lugar chorou durante um mês sem parar.
A partir dai a terra ficou conhecida como o vale de lágrimas e eram poucos os viajantes que queriam passar por lá, com medo de também eles ficarem tristes e não pararem de chorar.

terça-feira, 17 de março de 2009

SILENCIOSAMENTE

a tristeza apenas pode ser guardada na nossa memória






Edvard Munch "o grito "

A pintura leva-nos a nós próprios e aos nossos segredos mais profundos.
Por isso viver sem ela é como estar morto.






Simone Signoret, 1966
No ecrân, com o silêncio do medo

Encolher de Ombros, quando eles já não suportam o mundo


"Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus."
Carlos Drummond de Andrade




Poema pouco original do medo

Alexandre O'NeillO medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Alexandre O'Neill

segunda-feira, 16 de março de 2009

ESCUTAR OS OUTROS



Diz-se que é pecado, outros dirão que é intromissão na vida alheia, a minha mãe diria mesmo que é muito feio e o meu psiquiatra pode chamar-lhe uma prática pouco saudável.

Por mim, autor desta "cuscuvilhice inóqua ", é apenas um exercício de escuta que levo com algum afinco e do qual já extrai alguns benefícios, mesmo os mais práticos como virei a comprovar.

O rigor ético que imponho a mim mesmo, leva-me a que nunca transcreva as conversas alheias e não mencione os seus autores, até porque só gosto de ouvir as conversas dos desconhecidos e não os estando a ver, de preferência ( ou seja voltada de costas para quem fala).

Então, passo a explicar :

Os cafés, explanadas, restaurantes e outros locais lúdicos são como os táxis, mesmo quem é assim para o tímido, quando acompanhado, fala e conversa das coisas mais importantes de si e e dos outros, mesmo que seja para dizer mal, isso então é fantástico, não há nada melhor que dizer mal de alguém. Ninguém fala de tratados e de cálculos matemáticos nem de teorias de psicopedagogia. Falam das coisas da gente e como tal merecem ser ouvidas, escutadas, como eu prefiro. Gosto muito do termo escutar, significa estar com = ouvir, mesmo quando escutamos o que não era suposto.

Pois agora, vamos à parte prática e vou dar alguns exemplos do que já aprendi neste, como lhe vou chamar para não ferir susceptibilidades, passatempo inofensivo :
  • Aprender a tirar nódoas difíceis.
  • Resolver os problemas para os próximos dez anos da vida Portuguesa e Mundial.
  • Receitas várias : Bolos e sobretudo de quiches que o tempo é de crise e a ordem do dia são os aproveitamentos e restos.
  • Nomes de jogadores e tácticas completas para os responsáveis e treinadores de futebol.
  • Os crimes do dia, nacionais e internacionais.
  • As miúdas mais giras dos empregos respectivos.
  • Façanhas automobilísticas e outras.
  • Expedientes de auferir rendimentos originais, tais como conhecer mulheres casadas solitárias (tenho de confessar que desta vez levantei-me e fui-me embora de imediato, sem olhar para os protagonistas de tal oficio)
  • Crises de namoro provocadas por uma diminuição de SMS.
  • Duvidas e desacordos matrimoniais contados com mais ou menos pormenor.
  • Nomes, idades e façanhas dos netos
  • Relatos de sogras e noras mais ou menos maquiavélicos.
  • receitas para emagrecer 10 Kgs numa semana com provas e podendo comer de tudo.
Enfim, estes são apenas exemplos do que se escuta quando não é suposto. Para que tudo funcione, experimentem após esta "escuta incógnita", voltarem-se para trás e verem os seus faladores, porque é a falar que nos entendemos, pelo menos ensinaram-nos assim.

Preparem-se para algumas surpresas fantásticas.

domingo, 15 de março de 2009

VESTIDOS E CHOCOLATES




Há dias assim ...

Não sei o que pensam, mas por mim é das expressões de que mais gosto.
Há dias assim ...

Uns assim ... bons, outros assim ... maus e depois há aqueles que são assim ... assim, os mais perigosos e maléficos com prejuizos sérios e consequências várias.

A) Está calor. Veste o vestido do verão passado e fica satisfeita com o resultado. Os comprimidos e as massagens provam que os refegos do ano anterior já não existem. Dá-se inicio a um dia assim bom.

A) Vai para a cozinha e encontra B) a tomar o pequeno almoço.

B) olha para ela e diz que com tanta roupa gira e logo tem de vestir o vestido apertado que até a faz um pouco mais gorda. (só faltava dizer-lhe que a fazia parecer a mãe dele ou a tia, sei lá)

A) Respira fundo e não responde. Nos dias assim ... assim, é melhor ficar calada. A raiva é grande e de repente percebe porque é que tanta gente invoca como razão os dias assim assim para cometerem desgraças e outras tragédias mais ou menos publicáveis.

B) Sai de casa, não sem dar antes um um beijo na cara a A) como todos os dias.

A) No elevador do escritório encontra o colega do Marketing que faz de um dia assim para o mau num dia assim para o bom, diria mesmo num dia assim , mais para o fantástico :

C) Estás um espanto com esse vestido. Se eu fosse ao B) não te tinha deixado sair de casa...
A) Ri e pensa que só por isso, C) merece que lhe saia o totoloto, encontre uma carteira com um bilhete de avião para uma ilha deserta, seja promovido a director, sei lá. Tudo de bom e do melhor. há dias assim em que uma mulher se sente tão bem ,que até é capaz de ser caridosa com os homens e os seus piropos sexistas. O que é certo é que dois processos de divórcios complicados, [ A) é advogada ], resolveram-se nesse dia de tal forma que sai tarde mas feliz. a vida corre bem e o dia foi de facto assim ... bom.
Quando chegasse a casa tentaria não se lembrar da conversa da manhã. Não vale a pena estragar dias assim por causa de vestidos.

A) Em casa, tira os sapatos e liga o gravador de chamadas. B) avisa que não janta porque tem novamente uma reunião. Nessa semana já é o segundo dia assim, há dias para tudo e também há dias assim com reuniões.

A) Janta um iogurte porque ainda há mais um vestido apertado por vestir, vê o noticiário das dez como todos os dias e vai-se deitar.

Abre a cama, o copo de água e o comprimido para dormir, em cima da mesa de cabeceira. Olha para o frasco e para o vestido e tem medo dos tempos do não dormir. Tolera dias assim ... assim, assim maus, mas não aguenta noites assim ... assim, e decide : em vez de um toma dois comprimidos e dorme a noite toda.

A) De manhã quando acorda, a primeira coisa que vê é B) ainda a dormir. Anda assim ... assim por causa do excesso das reuniões, só pode ser. Levanta-se, vê o vestido pendurado e sorri ...

Há dias ... assim, outros assim ... assim e noites sem fim, como o vestido que aguarda dentro do roupeiro até virem outros dias assim ... assim, aqueles assim tão maus que só param com gelados de morango e caixas de chocolates.

Há dias assim ...



.

quarta-feira, 11 de março de 2009

NOS PÉS DO MEU AMOR




Nos pés do meu amor eu vejo o mar. São grandes e imensos os pés do meu amor.
Nos pés do meu amor construí dois mais um igual a três e mais um que são quatro.
Nos pés do meu amor eu ando nas ondas e não dou conta que elas levam o meu tempo.
Nos pés do meu amor eu canto os melhores dias e embalo as minhas piores noites.
Nos pés do meu amor eu já vi o mundo inteiro, as terras e os rios que parecem mares.
Nos pés do meu amor eu aconchego a minha alma fria na ternura dos pés do meu amor.
Nos pés do meu amor eu sei quem é o meu amor.

segunda-feira, 9 de março de 2009

AMARELO


Na ordenação abstracta das cores o amarelo é o seu paradigma mais controverso. Intenso e soberano, tem sido preferido por poucos, com excepção dos artistas, e renegado e omitido por muitos. Poucos de nós vestimos coisas muito amarelas, os nossos carros não são muito amarelos, não pintamos lábios e olhos de amarelo e associamos a cor a anagramas mais ou menos tropicais que não passam pela nossa cultura europeia. O sol e a terra no outono são amarelos, a areia é amarela, a banana e o ovo também até os tão populares frangos e perus são assim para o amarelado, mas nem isso faz com que gostemos mais do amarelo.
Tenho pena, porque claramente gosto do amarelo. Confessei o inconfessável.
Em crianças, adoramo-lo para pintar o sol, sim porque sabemos que existe um sol e ele é amarelo. Estamos contentes, pegamos no lápis amarelo e pintamos pai, mãe, manos, casas, árvores, tudo de amarelo até mesmo o que não é suposto , como os gatos e os cães. Nesta altura são raros os que já conhecem o Galfield. Não é por isso que não somos todo , génios pintores e os nossos desenhos não são postos na porta do frigorífico, nos ecrans dos computadores, até nos postais de natal das empresas dos pais. Com muito amarelo, claro.
Basta entrarmos na escola e os nossos traços "picassianos " esfumam-se como fantasmas Na sua vez apenas existem alfabetos carregados de tinta preta à espera de serem violados pelo risco vermelho do ensinador de letras e de cores. Tudo a bem da inteligência oficial. Essa cor ,é incolor e como tal ,é assim como a dor, não se vê mas está lá. Esgota todas e garante que tudo seja da forma que tem de ser.
No clima de toda esta desamarelização e do nosso crescimento desamarelado começamos a viver e a morrer por outro amarelo : o ouro, o dourado do ouro do dinheiro, dos anéis, das casas dos condomínios fechados . Deste amarelo esgotamo-nos a gostar, num clima de permanente agonia mas não faz mal. Imolamo-nos perante os seus raios dourados de ouro e sorrimos, mesmo que esgotados e vergados perante a sua tirania. Quanto aos amarelos dos frigoríficos, já só se encontram nos remoinhos da nossa memória.

domingo, 8 de março de 2009

DIREITO AOS DIREITOS HUMANOS


"Espáduas brancas palpitantes :
asas no exílio dum corpo
os braços calhas cintilantes

para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renuncia
ou cobardia
por vezes fêmea.

por vezes monja ..." Natália Correia


















madalena, joaquina, catarina, joão, maria, maria, mariana, carolina, joana, joana, eduarda, inês, inês, sara, sara, clara, clara, carlota, cristina, anabela, anabela, carla, carla, gabriela, elsa, elsa, lucilia, laurinda, alexandra, conceição, luisa, leonor, leonor, emilia, emilia, rosa, rosario, rosarinho, ana, ana maria, maria ana, sofia, raquel, beatriz, paula, teresa, mónica, antónia, francisca, manuela, natália, flor bela , ...












sexta-feira, 6 de março de 2009

Amor de Gato





Hora de almoço, jardim em Lisboa. Luísa sentada no banco do jardim voltado para a avenida principal. Senta-se, coloca cuidadosamente o bouquê de flores vermelhas a seu lado e abre a mala para tirar uma tosta de frango cuidadosamente embrulhada num guardanapo de papel e um livro. Sempre um livro de amor. Hoje era o Sementes de Amor.
Com uma mão come enquanto que a outra pega no livro : romântica desmedida, Luísa vive as tragédias dos apaixonados, os seus sonhos e desventuras chorando com as suas tristezas e ficando feliz com os seus reencontros. Foi-lhe difícil aceitar, a evolução dos beijos recatados dos livros de antigamente para as cenas escaldantes dos actuais, em que os personagens morrem com desejos inconfessáveis. Frases inteiras descrevem poses lascivas, linhas completas com nudezes permitidas, gemidos sussurrados e outras matérias mais ou menos escandalosas que os autores descrevem com tanto pormenor que parecem reais. Aí, Luísa, sente um fervilhar por dentro , um suor de mãos, um fogo no rosto que a leva a pousar o livro, compor a saia e olhar a ver se alguém está por perto, quase com receio que possam adivinhar o que ela está a ler.
A tarde continua igual no escritório. Quando chega às seis horas Luísa sai para apanhar o comboio. Está orgulhosa das suas flores, muito mais bonitas que as das outras mulheres para quem olha. Sim que nesse dia vê-se imensa gente com ramos de flores na mão. Chega a casa, veste-se com o seu melhor vestido e põe a mesa, com velas e tudo.
Na manhã seguinte, quando não acordou, estava tudo como devia : na cama, do lado direito ela própria, do lado esquerdo as flores que tinha comprado para si mesma como presente do dia dos namorados. Sim que não era por ser solteira, nunca ter recebido um beijo de um homem nem um convite para sair, que ia deixar de comemorar a data que ela gostava mais : o dia dos namorados.

Quem me contou esta história foi o gato azul da vizinha do primeiro andar direito. Sem que Luísa soubesse, ele tinha a faculdade de ser invisível e há muitos anos que estava apaixonado por ela, por isso ia e estava com ela em todos os momentos.

Também ele era um romântico ou não fosse um gato invisível e azul.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Índios pedem socorro para a Amazónia



Estes índios estão preocupados com o destino da Amazónia. Eles e todos, pelo menos os mais lúcidos e atentos. Só que nós vamos gostar da Amazónia possível após todos os acordos e protocolos de Kyoto e outros (valha-nos a esperança nos homens e em Obama).

Eles, no entanto, falam de um tempo que já partiu, sem óculos graduados e direito a primeiras páginas nos jornais. As terras livres para andar e os rios longos e sem tempo para navegar já não fazem parte da sua vida, apenas das suas histórias que de tanto serem contadas já se transformaram em lendas. E os duendes com penas e as fadas com lanças já não moram lá. Como a Alice do Martin Scorsese.

Quem brincou aos índios em miúdo compreende o texto e porventura lamenta a fotografia.

solidão


Todos os dias o Homem alto e de chapéu entrava no café e pedia: um copo de leite frio e uma sandes de fiambre. A mesa era sempre a mesma: ao canto, voltada para a parede, ficava resguardada de todos os olhares e dos ruídos mais estridentes do café. Nunca ninguém lhe ouviu outras palavras a não ser: um copo de leite frio, uma sandes de fiambre e um obrigado seco sussurrado debaixo do bigode fino e ralo quando o empregado lhe entregava o troco. Foi assim durante vinte anos: vinte minutos entre as oito e as oito e vinte da manhã. Mil e seiscentas horas no total. Hoje, o homem não apareceu. No seu lugar, sentou-se uma rapariga de cabelo vermelho e pediu um café. Procurou uma mesa e apenas restava aquela voltada para a parede. Com relutância sentou-se voltada para a parede e pensou na incongruência de tal coisa : uma mesa de café voltada para uma parede.

Eu que todos os dias vou ao mesmo café apenas gostava de saber quem era o homem e a razão dele não ter aparecido hoje. Sentada à janela, sim que eu prefiro a luz, limito-me a imaginar a razão da sua ausência e decidi por exclusão de razões que o homem de chapéu preto tinha morrido.

Não faz mal, eu também não gosto de sandes de fiambre.



detergente

Tudo começou com a descoberta da Ana Hatherly e na busca das suas Tisanas. Na sua vez encontrei "um calculador de improbabilidades" e com ele a poesia experimental. Aconselho vivamente. É um bom exercício para quem gosta de descobrir novos caminhos.

Num desses poemas, ela fala da essência do detergente e decompõe a palavra : é fantástico como ao desconstruirmos a palavra, vemos que ela é igual a de ter gente ou deter gente.
Desta evidência resultam várias considerações:

Tudo reside na forma como olhamos para as coisas e para as pessoas. As bivalências são sempre surpreendentes e oferecem-nos possibilidades infinitas de entendimentos.

De ter gente, é a razão ultima do ser enquanto parte do conjunto, mesmo que se queira ser apenas o numero único, divisível apenas por si próprio na imensidão dos números infinitos.

Deter Gente . Aqui é melhor irmos por partes e excluirmos a óbvia carga policial que os termos podem indiciar aos menos atentos. Fixemos as palavras em si :
deter como procura de não passarmos sem darmos conta,. É urgente que os outros percebam que existimos como somos e só assim nos podemos deter uns aos outros.
gente. Perdoem-me as outras línguas, mas fomos iluminados ao criarmos esta palavra tão cheirosa, carnuda, popular na sua sonoridade e grandiosa no seu sentido. Deter gente é o que todos fazemos ao longo da vida e é dessas escolhas, acasos, destinos , fados, porque não ,que mais tarde se fazem as nossas histórias.

Por ultimo apenas resta o evidente : quando lavarem a loiça lembre-se deste detergente que é igual a de ter gente e deter gente. Acredito que a loiça vai agradecer.