Este é um espaço que se pretende aberto a quem goste de contar histórias e de andar nos turbilhões labirínticos das palavras e das cores como bouquês feitos de lâminas.

domingo, 29 de março de 2009

CARRINHOS DE RODINHAS COMO NÓS




Num sábado igual a tantos outros encontrei a família distraída e saí da dispensa. Já há muito tempo que tinha planeado esta viagem que feita desta forma mais parecia uma fuga de casa. Ainda bem que há dois anos os meus donos decidiram comprar esta casa com elevador, senão as antigas escadas iam ser complicadas de descer.

Já na rua o grande problema foi descer passeios e subir lombas, para já não falar das escadas do metro. Eu, e as pessoas que as outras chamam deficientes andamos à "nora" para andar nesta terra. Parece que só pensam neles com pés certinhos e pernas direitas. Nada para quem tem rodinhas.

De repente os obstáculos deram lugar ao verdadeiro grito do ipiranga :

O meu primeiro bilhete de metro tirado sozinho e por mim próprio e ainda por cima para não ir às compras. Mesmo carregado como ia, só me apetecia cantar e pular. Nunca me senti tão feliz : viva a liberdade, abaixo a opressão , contra os tiranos donos das dispensas e o que dizer dos horríveis, barulhentos e mal cheirosos sacos de plástico que não paravam de me enfiar como se eu fosse um caixote do lixo.

Desci as escadas rolantes, uau ... e entrei na carruagem. Ao fundo já lá estavam todos. Está tanto frio, disse eu. Mesmo no mundo dos carrinhos das compras não há nada como o tempo para meter conversa. Depois foi o habitual, nada de dispensas, nem dos afazeres próprios de um carrinho de compras . O que importava nessa noite era o que íamos fazer.

O comboio parou. Todos em fila: 1, 2 e 3. up up, up já está... conseguimos. Estão todos, verificou o mais velho e que parecia ser o chefe. No mundo dos carrinhos das compras também há chefes. Não há hipótese. Até o meu espírito anarquista já se adaptou e em vez disso chamo-lhe organizador, coordenador, gestor, sei lá tudo o que não se pareça com chefe, mesmo.

Na rua fria, todos juntinhos íamos calados. Estávamos próximos e cada um ia com os seus pensamentos. Mais uma vez olhámos para dentro de cada um e verificámos que estava tudo completo e pronto. Nessa noite houve muito trabalho : havia poucas coisas para muitas pessoas. Cada vez são mais, temos de arranjar mais carrinhos, pensei.

Após estarmos vazios decidimos não ir embora. Assim como assim, só iam dar por nós no domingo de manhã quando quisessem ir às compras e se calhar nem isso.

Fomos buscar uns caixotes para descansar as rodinhas e nós e os outros, os amigos, as pessoas que lá estavam à nossa espera ,conversámos, contámos histórias, rimos, dançámos pela noite dentro e fomos talvez felizes.

Felizes, assim assim, só um bocadinho, que é difícil ser feliz, quando mesmo carrinhos revolucionários como eu não conseguem, não podem ser mais que simples carrinhos de rodinhas.

Na minha dispensa é que eu já não fico mais, pensei eu. Sempre fui um destemido, partidário de causas e decisões repentistas.

Baixei-me e ajustei a minha rodinha cansada e pesada. Curioso, agora que estava vazia é que estava tão pesada que eu quase não podia com ela. Milagre das rodinhas, pensei . Eu que até nem sou religioso; mas que pesava como chumbo, pesava.

Depois, pela manhã, nós os carrinhos das rodinhas , os outros, os nossos amigos , os que lá estão agora , dissemos todos adeus e até para a semana.

Adeus, e até para a semana ...

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