Este é um espaço que se pretende aberto a quem goste de contar histórias e de andar nos turbilhões labirínticos das palavras e das cores como bouquês feitos de lâminas.

domingo, 10 de maio de 2009

UMA MULHER DE 1900

Anos 70 em Portugal, um verão muito quente, uma família tradicional e um almoço de domingo igual a tantos outros. À mesa numa das cabeceiras a senhora, a dona da casa, no outro extremo o marido da filha. No lado direito, a menina (apesar dos seus quarenta e cinco anos) ao lado do marido, o filho e o sobrinho. Do outro sentavam-se os primos e a filha pequena.

Apesar de ser verão, a dona da casa exigia que tudo estivesse como ela queria e sabia. Toalha branca, direita como se acabada de engomar, copos para o vinho e para a água e guardanapos bordados envolvidos em pequenas alianças de prata com os monogramas de cada um dos presentes. Excepção para os pequenos que em vez das letras iniciais dos nomes tinham um menino e uma menina gravados tanto no guardanapo quanto na pequenina argola que as envolvia.

Estava um dia particularmente quente. Naquela época, o verão era verão e as estações eram bem delineadas no tempo. As estações e não só. Tudo tinha o seu tempo, não se comiam uvas em Março nem peru sem ser no natal, havia fatos de saída para os domingos, as crianças falavam pouco ou nada à mesa e tudo tinha o seu tempo e modo próprio de ser.

No entanto, naquele domingo passou-se qualquer coisa de anormal. O padrão sempre presente, neste cenário de conservadorismo, como que se esfumou por magia.

Esta história marcou a memória dos presentes nesse dia e tem sido contada aos mais novos da familia como prova de teimosia e autoritarismo para uns, coragem e exemplo de vida para outros. Como nisto dos factos, cada qual recolhe dos acontecimentos a parte que mais tem a ver consigo próprio.

Passemos então aos acontecimentos :

- O Sr. não vem para a mesa de camisa aberta. Não são propósitos de se estar a comer. Quem diz estas palavras é a velha senhora para o genro que por razões conhecidas mas nunca mencionadas nunca tinha aprovado aquele casamento e como tal nada melhor do que manter as distâncias de tratamento e não só.

- Ora essa, estou na minha casa, está calor e venho como eu me apetecer, responde o interpelado.

A esta altura dos acontecimentos, já todos os outros comensais se haviam calado. Sabiam que a altura era tensa e que de nada ganhavam em intervir, mesmo a filha e mulher dos dois oponentes, que baixando os olhos, adoptava a atitude submissa de sempre.

- Nesse caso, e como o calor não é só para o Sr., eu despirei também a minha camisa. A senhora levantou-se, desencostou um pouco a cadeira e ergueu-se. De repente, ela que já era alta, pareceu tão esguia como uma vara. Alta e magra, velha e seca. A pela enrugada e muito branca que já deixava ver a cor azul das veias. Nos olhos a vivacidade e a determinação de quem tem vinte anos. Saia preta e blusa de seda às bolinhas brancas e pretas. Os seus dedos esguios apenas adornados por uma aliança de ouro chapado abeiram-se da gola e começam a desabotoar os botõezinhos forrados do tecido da blusa. Chegou até se ver o inicio da renda preta da combinação.

Do outro lado da mesa, o genro levantou-se de um repente e abotoou a camisa, não sem antes protestar entre dentes estar em sua casa e não poder usufruir da liberdade de uma camisa desapertada.

A senhora sentou-se de novo, abotoou a blusa, apertou a mão da filha, virou-se para o sobrinho mais novo e disse com a voz mais doce deste mundo :

Podemos agora começar a refeição. Depois vais contar à avó todos os mergulhos de mar que deste hoje, está bem ?

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